O Vale dos Esquecidos (teaser-01)
Um trecho (em desenvolvimento) do meu livro.
Joshua Glass
12/9/20252 min read


Na virada daquela ravina descansava há tempos o resto de um carro batido. Alguém sem prudência voara por cima da cerca que limita a estrada, deixando um caminho rasgado pelo meio da mata. Haviam sido dadas notícias a parentes e amigos, mas ninguém quis nem saber do rapaz que agora estava sumido.
“Sumido”, disseram eles, porque embora ninguém negasse que estava morto - como só poderia ter sido num dia daqueles - também ninguém ia querer procurar por corpo em floresta, principalmente com rumores de lobos e bruxas por aí. Nem a polícia, nem as pessoas se mobilizaram, e não passou um ano antes que ninguém mais se lembrasse do jovem escritor.
A bicicleta, única que deveria ter sido sua herança, foi jogada logo no aterro municipal. Poderiam, eu sei, ter vendido, mas todos concordaram “é amaldiçoada, descartem”. E assim o senhor Alfredo Dun, tenaz na tinta e na folha, foi no fim ser jogado num fosso escuro - provavelmente casa de urso - e coberto de folhas. Passaram-se trinta anos antes de alguém perguntar-se o que fazia no Vale aquele carro velho e quebrado. Foi num dia cinzento de Maio que Sr. Figs decidiu desenhar (de novo) o tal mapa do Vale Azul. Se bem que, no fim das contas, ele sabia que o nome certo era “Vale dos Esquecidos”.
Havia, naquele bosque, uma coleção intrigante de criaturas. Algumas, como logo nós vemos, são racionais, ou ao menos são capazes do verbo, do rito e do medo - o que, convenhamos, é mais do que muita gente exercita na vida inteira. Texugo (aliás, Sr. Figs) era um desses que pensam muito mas muito temem falar, um jovem que não podia esquecer-se de muitas coisas as quais jamais tinha visto, mas sabia serem verdade no fundo do coração.
Há dias ele pensara ter visto um homem humano - desses de verdade – enquanto coletava fungos debaixo de um teixo podre. Mas quando correu atrás do homem humano, achou logo um precipício que não pôde atravessar. Sem perceber onde ia tomou uma trilha, e a mata parecia sempre dar mais bloqueio conforme ele avançava, ansioso, tentando ver mais uma vez o homem, até sair num riacho que enfim deixou-o na porta da própria toca. Após muitas incursões, concluiu o Texugo que humanos não existiam - ou então que uma força grande e misteriosa o fazia perder a chance todas as vezes.
Os outros animanos (pois era assim que eles se chamavam) tentavam dissuadi-lo de andar longe da Clareira. “Aqui não tememos lobos, mas fora… fora nunca sabemos, nem mesmo se o Lobo está lá”. E quando diziam “Lobo” com “L” em letra gigante, Texugo já compreendia que era um aviso terrível, pois estavam falando daquele Lobo em particular. E, às vezes, passava um mês sem sair sozinho, tentava andar em silêncio, fazia de novo a lista dos quinze tipos de pedras que havia sob o riacho, buscava entre os cogumelos se havia algum não catalogado, e enfim sempre se indagava se iria embora algum dia, ou se existia de fato esse bicho chamado homem, ou se havia mesmo algum mundo além das montanhas, que fosse feito de pedra, de terra ou outra matéria.
Mas quando passava um tempo – de praxe não muito tempo – lá estava o mundo dos homens, lançando imagens estranhas na mente desse Texugo. E ele à noite sonhava, ou cria ver de relance, ou concluía depois de muitos estudos que “essa lama aqui, com essas marcas estranhas… isso é pegada de carro! Eu sei agora, por provas cabais, que existem pneus!”